4 de fev. de 2009

Espreita, Intenção e Posição de Sonho

No dia seguinte, novamente ao anoitecer, Don Juan veio ao aposento onde eu estava conversando com Genaro. Segurou-me pelo braço e dirigiu-me através da casa para o pátio dos fundos. Já bastante escuro. Começamos a caminhar pelo corredor que rodeava o pátio.
Enquanto caminhávamos, Don Juan disse-me que desejava prevenir-me mais uma vez de que é muito fácil, no caminho do conhecimento, perder-se na confusão e na morbidez. Disse que os videntes defrontam-se com grandes inimigos que podem destruir seu propósito, minar seus objetivos e torná-los fracos; inimigos criados pelo próprio caminho do guerreiro juntamente com as sensações de indolência, preguiça e vaidade que são partes integrantes de nosso mundo diário. Observou que os enganos que os antigos videntes cometeram como resultado de indolência, preguiça e vaidade eram tão grandes, tão graves, que os novos videntes não tiveram escolha senão maldizer e rejeitar sua própria tradição.
-A coisa mais importante que os novos videntes precisavam - continuou Dom Juan - eram passos práticos para deslocar seus pontos de aglutinação. Como não tinham nenhum, começaram a desenvolver um intenso interesse por ver o brilho da consciência, e assim desenvolveram três conjuntos de técnicas que se tornaram sua pedra angular.
Dom Juan disse que, com esses três conjuntos, os novos videntes executaram um feito extraordinário e difícil. Conseguiram fazer o ponto de aglutinação deslocar-se sistematicamente de sua posição costumeira. Reconheceu que os antigos videntes também haviam realizado esse feito, mas por meio de manobras caprichosas, idiossincráticas.
Explicou que a visão que os novos videntes tiveram do brilho da consciência resultou na seqüência em que organizaram as verdades dos antigos videntes sobre a consciência. A partir daí, desenvolveram os três conjuntos de técnicas. O primeiro é o domínio da espreita, o segundo, o domínio da intenção, e o terceiro o domínio do sonho. Insistiu que me ensinava esses três conjuntos desde o primeiro dia que nos conhecemos.
Disse-me que havia ensinado o domínio da consciência de dois modos, exatamente como os novos videntes recomendam. Em seus ensinamentos para o lado direito, ministrados durante minha consciência normal, atingiu dois objetivos: ensinou-me o caminho do guerreiro e afrouxou meu ponto de aglutinação de sua posição original. Em seus ensinamentos para o lado esquerdo, ministrados enquanto eu me encontrava em consciência intensificada, também atingiu dois objetivos: fez meu ponto de aglutinação deslocar-se para tantas posições quantas fui capaz de sustentar, e deu-me uma longa série de explicações.

Dom Juan parou de falar, o olhou-me fixamente. Houve um silêncio desajeitado; então começou a falar sobre a espreita. Disse que a espreita teve origens muito humildes e acidentais. Partiu da observação feita pelos novos videntes de que, quando os guerreiros se comportam por algum tempo de modo fora do habitual, as emanações não são usadas no interior de seus casulos começam a brilhar. E seus pontos de aglutinação se deslocam de maneira suave, harmoniosa, muito pouco perceptível.

Estimulados por essa observação, os novos videntes começaram a praticar o controle sistemático do comportamento. Chamaram a essa prática arte da espreita. Dom Juan comentou que, embora discordasse do nome, ele era apropriado, por que a espreita envolvia um tipo específico de comportamento diante das pessoas, um comportamento que poderia ser categorizado como sub-reptício.

Os novos videntes, armados com essa técnica, sondaram o conhecido de uma maneira sóbria e frutífera. Pela prática contínua, fizeram seus pontos de aglutinação se deslocar constantemente.

-A espreita é uma das maiores realizações dos novos videntes. Eles decidiram que deveria ser ensinada ao nagual dos dias modernos quando seu ponto de aglutinação já tivesse deslocado bem profundamente para o lado esquerdo. O motivo desta decisão é que um nagual precisa aprender os princípios da espreita sem o incomodo do inventário humano. Afinal, o nagual é o líder de um grupo, e para lidera-lo deve agir rapidamente, sem ter que pensar primeiro.

“Outros guerreiros podem aprender a espreitar em sua consciência normal, embora seja aconselhável que o façam em consciência intensificada...não tanto por causa do valor da consciência intensificada, mas porque isto imbui a espreita de um mistério que ela na verdade não possui; espreitar é meramente um comportamento diante das pessoas.”

Disse que ainda que eu podia agora compreender que mudar o ponto de aglutinação era a razão pela qual os novos videntes atribuíam um valor tão alto à interação com os pequenos tiranos.
Os pequenos tiranos forçavam os videntes a usar os princípios da espreita e, ao fazê-lo, ajudavam-nos a deslocar seus pontos de aglutinação.

Perguntei-lhe se os antigos videntes sabiam alguma coisa sobre os princípios da espreita.

-A espreita foi desenvolvida exclusivamente pelos novos videntes – falou, sorrindo. – São os únicos videntes que tiveram que lidar com pessoas. Os antigos videntes estavam tão enredados em seu sentido de poder que só foram perceber que as pessoas existiam quando elas começaram a bater-lhes nas cabeças. Mas você já sabe de tudo isso.

Dom Juan disse em seguida que o domínio da intenção, juntamente com o domínio da espreita são duas obras primas dos novos videntes, que marcam o advento dos videntes dos dias de hoje. Explicou que em seus esforços para obter uma vantagem sobre os opressores os novos videntes perseguiam cada possibilidade. Sabiam que seus predecessores haviam executado feitos extraordinários, manipulando uma força misteriosa e miraculosa que só podiam descrever como poder. Os novos videntes tinham muito pouca informação sobre essa força, de modo que foram obrigados a examiná-la sistematicamente através da visão. Seus esforços foram amplamente recompensados quando descobriram que a energia de alinhamento é essa força.

Começaram por ver como o brilho da consciência aumenta em tamanho e intensidade quando as emanações no interior do casulo são alinhadas com as emanações livres. Usaram essa observação como trampolim, exatamente como haviam feito com a espreita, e passaram a desenvolver uma complexa série de técnicas para manejar esse alinhamento de emanações.

Inicialmente, referiam-se a essas técnicas como o domínio do alinhamento. Perceberam então que o que estava em jogo era muito mais do que o alinhamento; era a energia produzida pelo alinhamento de emanações. A essa energia chamaram vontade. A vontade tornou-se a segunda base. Os novos videntes compreenderam-na como uma explosão cega, impessoal e incessante de energia que nos faz agir do modo como fazemos. A vontade responde por nossa percepção do mundo dos eventos comuns e, indiretamente, através da força dessa percepção, responde pela localização do ponto de aglutinação em sua posição costumeira.
Dom Juan disse que os novos videntes examinaram como tem lugar a percepção do mundo na vida cotidiana e viram os efeitos da vontade. Viram que o alinhamento é incessantemente renovado, de maneira a dar um sentido de continuidade à percepção. Para sempre renovar o alinhamento com o frescor de que este necessita para produzir um mundo vivo, a explosão de energia que sai desses mesmos alinhamentos é automaticamente redirecionada para reforçar alguns alinhamentos especiais.

Essa nova observação serviu aos novos videntes como outro trampolim, que os ajudou a atingir a terceira base do conjunto. Chamaram-na intenção, e descreveram-na como a orientação proposital da vontade, a energia do alinhamento.

-Silvio Manoel, Genaro e Vicente foram levados pelo nagual Julian a aprender esses três aspectos do conhecimento dos videntes. Genaro é o mestre da manipulação da consciência. Vicente o mestre da espreita, e Silvio Manoel o mestre da ‘intenção’.

“Vamos agora a um explicação final do domínio da consciência: é por isso que Genaro o está ajudando.”

Dom Juan falou às aprendizes mulheres por um longo tempo. Elas ouviam-no com expressões sérias em suas faces. Tive certeza de que ele estava dando instruções detalhadas sobre difíceis procedimentos, a julgar pela profunda concentração de todas.

Havia sido excluído de sua reunião, mas as observara enquanto conversavam na sala da frente da casa de Genaro. Sentei-me à mesa da cozinha, esperando até que terminassem. Então as mulheres levantaram-se para partir, mas antes de fazê-lo vieram à cozinha com Dom Juan. Ele sentou-se à minha frente, enquanto as mulheres falavam comigo com desajeitada formalidade. Na realidade, chegaram até mesmo a abraçar-me. Todas elas estavam incomumente amigáveis, e até mesmo loquazes. Disseram que iam juntar-se aos aprendizes homens, que haviam saído com Genaro horas antes. Genaro ia mostrar a todos o seu ‘corpo sonhador’.

Assim que as mulheres partira, Dom Juan retomou abruptamente sua explicação. Disse que a medida que o tempo passava e os novos videntes estabeleciam suas práticas, perceberam que, sob as condições prevalecentes da vida, espreitar desloca muito pouco os pontos de aglutinação. Para efeito máximo, a espreita necessitava de uma localização ideal: necessitava de pequenos tiranos em posições de grande autoridade e poder. Tornou-se cada vez mais difícil para os novos videntes se colocarem a si próprios em tais situações; a tarefa de improvisá-la ou procurá-la tornou-se um carga insuportável.

Os novos videntes julgaram imperativo ver as emanações da Águia para encontrar uma maneira mais adequada de deslocar o ponto de aglutinação. Quando tentaram ver as emanações, foram confrontados com um problema sério. Descobriram que não há maneira de ver as emanações sem correr um risco mortal, e no entanto tinham de vê-la. Essa foi a época em que usaram a técnica de sonhar dos antigos videntes como um escudo para proteger-se do golpe mortal das emanações da Águia. E, ao agir assim, perceberam que sonhar era na verdade o modo mais eficiente de deslocar o ponto de aglutinação.

-Um dos princípios mais estritos dos novos videntes – continuou Dom Juan – esta que os guerreiro têm de aprender a sonhar enquanto estão em seu estado normal de consciência. Seguindo este princípio, comecei a ensinar-lhe a sonhar praticamente desde o primeiro dia em que nos vimos.

-Porque os novos videntes determinaram que sonhar deve ser ensinado em consciência normal?

-Porque sonhar é muito perigoso, e os sonhadores muito vulneráveis. É perigoso porque tem um poder inconcebível; torna os sonhadores vulneráveis porque os deixa à mercê da força incompreensível do alinhamento.

“Os novos videntes perceberam que em nosso estado normal de consciência temos incontáveis defesas que podem resguardar-nos contra a força de emanações inusuais, que subitamente se alinham durante o sonho.

Dom Juan explicou que sonhar, assim como espreitar, começava como uma simples observação. Os antigos videntes tiveram consciência de que nos sonhos o ponto de aglutinação se desloca ligeiramente para a esquerda, de maneira natural. Com efeito, o ponto de aglutinação relaxa quando o homem dorme, e todos os tipos de emanações inusuais começam a brilhar.

Os antigos videntes ficaram imediatamente intrigados com esta observação e começaram a trabalhar com esse deslocamento natural até se tornarem capazes de controlá-lo. Chamaram esse controle de sonhar, ou a arte de manejar o corpo sonhador.

Observou que não há maneira de descrever a imensidão do conhecimento dos antigos videntes sobre sonhar. Muito pouco deste, entretanto, teve qualquer utilidade para os novos videntes. Assim, quando chegou a tempo da reconstrução, os novos videntes observaram apenas os elementos essenciais de sonhar para ajudá-los a ver as emanações da Águia e a deslocar seus pontos de aglutinação.

Disse que os videntes, antigos e novos, compreendem sonhar como o controle do deslocamento natural que o ponto de aglutinação sofre durante o sono. Salientou que controlar essa mudança não quer dizer de modo algum dirigi-la, mas manter o ponto de aglutinação fixo na posição para onde se desloca naturalmente durante o sono, manobra extremamente difícil que exigiu enorme esforço e concentração dos antigos videntes.

Dom Juan explicou que os sonhadores precisam atingir um equilíbrio muito sutil, pois os sonhos não podem sofrer interferência, assim como não podem ser comandados pelo esforço consciente do sonhador. Por outro lado, o deslocamento dos pontos de aglutinação deve obedecer ao comando do sonhador – uma contradição que não deve ser racionalizada mas que precisa se resolvida na prática.

Após observarem os sonhadores enquanto dormiam, os antigos videntes encontraram a solução, deixando os sonhos seguirem seu curso natural. Tinham visto que, em alguns sonhos, o ponto de aglutinação do sonhador penetraria consideravelmente mais fundo no lado esquerdo do que em outros. Essa observação fê-los pensar se é o conteúdo do sonho que faz o ponto de aglutinação deslocar-se, ou se é o próprio movimento do ponto de aglutinação produz o conteúdo do sonho ao ativar emanações não utilizadas.

Logo perceberam que é o deslocamento do ponto de aglutinação para o lado esquerdo que produz os sonhos. Quanto mais amplo é o movimento, mais vívidos e bizarros eles são. Inevitavelmente, tentaram comandar seus sonhos, almejando fazer com que seus pontos de aglutinação se deslocassem mais profundamente para o lado esquerdo. Ao tentá-lo, descobriram que, quando os sonhos são manipulados consciente ou semi-conscientemente, o ponto de aglutinação retorna imediatamente ao seu lugar usual. Como desejavam que esse ponto se deslocasse, chegaram à inevitável conclusão de que interferir com os sonhos era interferir com o deslocamento natural do ponto de aglutinação.

Dom Juan disse que os antigos videntes continuaram desenvolvendo seu impressionante conhecimento sobre o assunto – um conhecimento que tinha um valor tremendo para que os novos vidente aspiravam fazer com o sonho, mas que lhes era de pouca utilidade em sua forma original.

Disse me que até ai eu tinha compreendido sonhar como sendo o controle dos sonhos, e que todos os exercícios que ele me havia proposto para executar, tais como encontrar minhas mãos em meus sonhos, não eram, embora pudesse parecer o contrário, destinados a ensinar-me a comandar meus sonhos. Aqueles exercícios destinavam-se a manter meu ponto de aglutinação fixo no lugar para qual se deslocara durante o sonho. É nesse ponto que os sonhadores devem atingir o equilíbrio sutil. Tudo o que podem dirigir é a fixação de seus pontos de aglutinação. Os videntes são como pescadores equipados com uma linha que se agarra em qualquer parte; a única coisa que podem fazer é manter a linha ancorada no ponto em que afunda.

-O lugar para onde o ponto de aglutinação se desloca nos sonhos é chamado de posição de sonho. continuou. – Os antigos videntes ficaram tão especializados em manter sua posição de sonho que eram até mesmo capazes de acordar enquanto seus pontos de aglutinação estavam ancorados ali.

“Devo esclarecer que sonhar tem um terrível obstáculo” continuou. “Pertence aos antigos videntes. Está impregnado de seu espírito. Fui muito cuidadoso ao guia-lo através disso, mas ainda assim não há maneira de estar seguro”.

-Sobre o que está me prevenindo, Dom Juan?

-Estou prevenindo-o sobre as ciladas de sonhar, que são verdadeiramente estupendas. No sonho não há realmente qualquer maneira de dirigir o deslocamento do ponto de aglutinação: a única coisa que dita essa mudança é a força ou a fraqueza interior dos sonhadores. Exatamente ai temos a primeira armadilha.

Castaneda - O Fogo Interior