26 de dez. de 2008

A Recapitulação

De acordo com o que Dom Juan ensinava a seus discípulos, a recapitulação era uma técnica descoberta pelos feiticeiros do antigo México e usada por todos os xamãs praticantes dali por diante, de examinar e reviver todas as experiências de suas vidas para alcançar dois objetivos transcendentais: o objetivo abstrato de cumprir um código universal que exige que a consciência seja abandonada no momento da morte e o objetivo extremamente pragmático de adquirir fluidez perceptiva.

Ele dizia que a formulação do primeiro objetivo era o resultado de observações que os feiticeiros fizeram através de sua capacidade de ver a energia diretamente como ela flui no universo. Eles tinham visto que no universo existe uma força gigantesca, um imenso conglomerado de campos de energia que eles chamaram a águia ou o mar escuro da consciência. Eles observaram que o mar escuro da consciência é a força que empresta consciência a todos os seres vivos, do vírus ao homem. Acreditavam que a força empresta consciência a um ser recém-nascido e que este ser aumenta aquela consciência através das suas experiências de vida até o momento em que a força exige sua devolução.

No entendimento dos feiticeiros, todos os seres vivos morrem porque são forçados a devolverem a consciência que lhes foi emprestada. Através das eras, os feiticeiros têm entendido que não existe nenhuma maneira do que o homem moderno chama de o nosso modo linear de pensamento explicar um fenômeno como este, não há como explicar como a consciência é emprestada e depois retomada. Os feiticeiros do antigo México viam isto como um fato energético do universo, um fato que não pode ser explicado em termos de causa e efeito ou em termos de um propósito que pudesse ser determinado a priori.

Os feiticeiros da linhagem de Dom Juan acreditavam que recapitular significava dar ao mar escuro da consciência o que ele estava buscando: as suas experiências de vida. Entretanto acreditavam que, através da recapitulação, poderiam adquirir um grau de controle que lhes permitiria separar as experiências de vida da sua força vital. Para eles, as duas não estavam insoluvelmente entrelaçadas; só estavam unidas circunstancialmente.

Esses feiticeiros afirmavam que o mar escuro da consciência não quer tirar a vida dos seres humanos; só quer as experiências de vida. A falta de disciplina nos seres humanos os impede de separar as duas forças e, no final, eles perdem suas vidas, onde se esperava que perdessem apenas a força das experiências de vida. Os feiticeiros viam a recapitulação como o procedimento através do qual eles poderiam dar ao mar escuro da consciência um substituto para suas vidas. Eles abriam mão das experiências de vida relatando-as, mas retinham sua força vital.

Quando examinadas em termos dos conceitos lineares do nosso mundo ocidental, as alegações perceptivas dos feiticeiros não fazem nenhum sentido. A civilização ocidental tem estado em contato com os xamãs do Novo Mundo há quinhentos anos e nunca um discurso filosófico sério baseado nas declarações feitas pelos xamãs.
Por exemplo, para qualquer membro do mundo ocidental, a recapitulação pode parecer coerente com a psicanálise, algo na linha de um procedimento psicológico, uma espécie de técnica de auto-ajuda. Nada poderia estar mais distante da verdade.

De acordo com Dom Juan Matus, o homem sempre perde por negligência. No caso das premissas da feitiçaria, ele acreditava que o homem ocidental está perdendo uma tremenda oportunidade para intensificar a sua consciência e que a maneira como o homem ocidental se relaciona com o universo, a vida e a consciência é apenas uma entre múltiplas opções.

Para os xamãs praticantes, recapitular significava dar a uma força incompreensível – o mar escuro da consciência – a própria coisa que ela parecia estar procurando: as experiências de vida, isto é, a consciência que eles ampliaram através daquelas próprias experiências de vida. Já que provavelmente Dom Juan não poderia me explicar esses fenômenos em termos de lógica clássica, ele dizia que tudo o que os feiticeiros podiam desejar fazer era realizar a façanha de reter sua força vital sem saber como isso era feito. Também dizia que havia milhares de feiticeiros que tinham conseguido fazer isso. Tinham conservado a sua força vital após terem dado ao mar escuro da consciência a força das experiências de vida. Para Dom Juan, isso significava que esses feiticeiros não morreram no sentido usual como entendemos a morte, mas transcenderam-na retendo sua força vital e desaparecendo da face da terra, embarcando em uma viagem definitiva de percepção.

A crença dos xamãs da linhagem de Dom Juan era que, quando a morte acontece dessa forma, todo o nosso ser transforma-se em energia, um tipo especial de energia que conserva a marca da nossa individualidade. Dom Juan tentava explicar isso em um sentido metafórico dizendo que nós somos compostos de um número de nações unitárias: a nação dos pulmões, a nação do coração, a nação do estomago, a nação dos rins e assim por diante. Ás vezes cada uma dessas nações funciona independentemente das outras, mas no momento da morte todas elas são unificadas em uma única entidade. Os feiticeiros da linhagem de Dom Juan chamavam esse estado de “liberdade total”. Para os feiticeiros, a morte é uma unificadora e não uma exterminadora, como ela o é para o homem comum.

- Esse estado é a imortalidade, Dom Juan? – perguntei.
- Isso de modo algum é a imortalidade – respondeu ele. – É simplesmente a entrada em um processo evolucionário, usando o único meio para a evolução que o homem tem à sua disposição: a consciência. Os feiticeiros da minha linhagem estavam convencidos de que, biologicamente, o homem não poderia evoluir mais; consequentemente, consideravam a consciência do homem o único meio para evoluir.
No momento de morrer os feiticeiros não são aniquilados pela morte, mas transformados em seres inorgânicos: seres que tem consciência, mas não um organismo. Para eles, serem transformados em um ser inorgânico era evolução e isso significava que um novo tipo indescritível de consciência lhes era emprestado, uma consciência que permaneceria por verdadeiramente milhões de anos, mas que algum dia também precisaria se devolvida ao doador: o mar escuro da consciência.

Uma das descobertas mais importantes dos xamãs da linhagem de Dom Juan foi que, como todas as outras coisas do universo, o nosso mundo é uma combinação de duas forças opostas e ao mesmo tempo complementares. Uma dessas forças é o mundo que conhecemos, que os feiticeiros chamavam de o ‘mundo dos seres orgânicos’. A outra força é algo que eles chamavam ‘o mundo dos seres inorgânicos’.

- O mundo dos seres inorgânicos – dizia Dom Juan – é povoado por seres que possuem consciência, mas não um organismo. Eles são conglomerados de campos de energia, exatamente como nós o somos. Aos olhos de um vidente, em vez de seres luminosos, como os seres humanos o são, eles são bastante opacos. Não são configurações energéticas arredondadas, mas sim alongadas, como uma vela. Em essência, são conglomerados de campos de energia que, assim como nós, têm coesão e limites. São mantidos unidos pela mesma força aglutinadora que mantém os nossos campos de energia unidos.

- Onde fica esse mundo inorgânico, Dom Juan? – perguntei.
- É o nosso mundo gêmeo – respondeu ele. – Ocupa o mesmo tempo e o mesmo espaço que o nosso mundo, mas o tipo de consciência do nosso mundo é tão diferente do tipo de consciência do mundo inorgânico que nós nunca notamos a presença dos seres inorgânicos, embora eles notem a nossa.
- Os seres inorgânicos são seres humanos que evoluíram? – perguntei.
- Absolutamente não! – exclamou ele. – Os seres inorgânicos do nosso mundo gêmeo têm sido intrinsecamente inorgânicos desde o início, do mesmo modo como temos sido sempre intrinsecamente seres orgânicos, também desde o início. Eles são seres cuja consciência pode evoluir exatamente como a nossa, e sem dúvida o faz, mas não tenho nenhum conhecimento direto de como isso acontece. Entretanto o que sei é que um ser humano cuja a consciência evoluiu é um ser inorgânico brilhante, luminescente e arredondado de um tipo especial.

Dom Juan me deu uma série de descrições desse processo evolucionário, que eu sempre assumi como metáforas poéticas. Eu escolhia a que me agradava mais, que era a ‘liberdade total’. Imaginava um ser humano que entra em liberdade total como sendo o ser mais corajoso, mais imaginativo possível. Dom Juan dizia que eu não estava fantasiando absolutamente nada – que, para entrar em liberdade total, um ser humano deve invocar o seu lado sublime que, dizia ele, os seres humanos têm mas que nunca lhes ocorre usar.

Dom Juan descrevia o segundo, o objetivo pragmático da recapitulação, como a aquisição de fluidez. O fundamento lógico dos feiticeiros por trás disso tinha a ver com um dos assuntos mais evasivos da feitiçaria: o ‘ponto de aglutinação’, um ponto de intensa luminosidade, do tamanho de uma bola de tênis, perceptível quando os feiticeiros ‘vêem’ um ser humano como um conglomerado de campos de energia.
Feiticeiros como Dom Juan ‘vêem’ que trilhões de campos de energia na forma de filamentos de luz vindos do todo o universo convergem ao ‘ponto de aglutinação’ e o atravessam. Essa confluência de filamentos dá ao ponto de aglutinação a sua luminosidade. O ‘ponto de aglutinação’ possibilita que um ser humano perceba aqueles trilhões de filamentos de energia transformando-os em dados sensoriais. Depois o ponto de aglutinação interpreta esses dados como o mundo da vida cotidiana, isto é, em termos de socialização e do potencial humano.

Recapitular é reviver todas ou quase todas as experiências que tivemos e, fazendo isso, deslocar o ponto de aglutinação, ligeiramente ou bastante, impelindo-o pela força da memória a adotar a posição que tinha quando o acontecimento que está sendo recapitulado ocorreu. Esse ato de ir de um lado para o outro de posições anteriores à atual proporciona aos xamãs praticantes a fluidez necessária para suportarem diferenças extraordinárias em suas viagens pelo ‘infinito’. Para os praticantes da Tensegridade, a recapitulação proporciona a fluidez necessária para suportarem diferenças que não fazem parte, de modo algum, de sua cognição habitual.

Como um procedimento formal, a recapitulação era feita nos tempos antigos recordando-se de cada pessoa que os praticantes conheciam e de cada experiência em que tomavam parte. Dom Juan sugeria que, no meu caso, que é o caso do homem moderno, eu fizesse uma lista por escrito de todas as pessoas que eu tinha conhecido em minha vida, como um estratagema mnemônico. Uma vez que eu tivesse escrito a lista, e.e continuaria a me dizer como usa-la. Eu precisava pegar a primeira pessoa da minha lista, que retrocedia no tempo do presente até a época da minha primeiríssima experiência de vida, e, na minha memória, estabelecer a minha última interação com aquela primeira pessoa. Essa ação é chamada de organizar o acontecimento a ser recapitulado.

Uma detalhada recordação de minúcias é requerida como o meio apropriado de afiar a capacidade de lembrar. Essa recordação envolve obter todos os detalhes físicos pertinentes, tal como o ambiente no qual o acontecimento recordado ocorreu. Uma vez que o acontecimento está organizado, a pessoa deve realmente entrar no local em si, prestando especial atenção a quaisquer configurações físicas relevantes.

Por exemplo, se a interação aconteceu em um escritório, o que deve ser lembrado é o chão, as portas, as paredes, os quadros, as janelas, as mesas, os objetos sobre as mesas, todas as coisas que poderiam ter sido observadas em um relance e depois esquecidas.

“Como um procedimento formal, a recapitulação deve começar pelo relato minucioso de acontecimentos que acabaram de ocorrer. Dessa forma, a primazia da experiência tem precedência. Alguma coisa que acabou de ocorrer é algo que a pessoa pode se lembrar com grande precisão. Os feiticeiros sempre confiaram no fato de que os seres humanos são capazes de armazenar informações detalhadas das quais não estão conscientes e de que aquele detalhe é o que o mar escuro da consciência procura.

A verdadeira recapitulação do acontecimento requer que a pessoa respire profundamente, abanando a cabeça, por assim dizer, muito lenta e delicadamente, de um lado para outro, começando por qualquer que seja o lado, esquerdo ou direito. Esse abano da cabeça era feito tantas vezes quantas fossem necessárias, enquanto a pessoa se lembrava de todos os detalhes acessíveis. Dom Juan dizia que os feiticeiros falavam sobre esse ato como inalar todos os sentimentos que a pessoa teve no acontecimento sendo recordado e expelir todos os humores indesejáveis e os sentimentos irrelevantes que permaneceram nela.


Os feiticeiros acreditam que o mistério da recapitulação reside no ato de inalar e exalar. Uma vez que a respiração é uma função de manutenção da vida, os feiticeiros tem certeza de que através dela a pessoa também pode entregar ao mar escuro da consciência o fac-símile das suas experiências de vida. Quando eu pressionava Dom Juan por uma explicação racional sobre essa idéia, sua posição era que coisas como a recapitulação só podiam ser experimentadas e não explicadas. Ele dizia que no ato de fazer a pessoa pode encontrar a libertação e que explicar isso era dissipar nossa energia em esforços infrutíferos. Seu convite era coerente com todas as coisas relacionadas ao seu conhecimento: o convite para entrar em ação."

Na recapitulação a lista de nomes é usada como um estratagema mnemônico que impele a memória em uma viagem inconcebível. A posição dos feiticeiros a esse respeito é que relembrar acontecimentos que acabaram de ocorrer prepara o solo para a recordação de acontecimentos mais distantes no tempo com a mesma clareza e proximidade. Recordar experiências desse modo é revivê-las e extrair dessa recordação um ímpeto extraordinário que é capaz de despertar a energia dispersada dos nossos centros de vitalidade e fazê-la retornar para eles.
Os feiticeiros se referem a essa redistribuição de energia que a recapitulação causa como obter fluidez após dar ao mar escuro da consciência o que ele está procurando.

Carlos Castaneda - Passes Mágicos