27 de dez. de 2008

Tensegridade

Tensegridade é a versão moderna dos passes mágicos dos xamãs do antigo México. A palavra Tensegridade é uma definição mais apropriada, porque é uma mistura de dois termos, ‘tensão e integridade’: termos que significam as duas forças propulsoras dos passes mágicos. A atividade criada contraindo e relaxando os tendões e músculos do corpo é ‘tensão’; ‘integridade’ é o ato de considerar o corpo como uma unidade saudável, completa e perfeita.

A Tensegridade é ensinada como um sistema de movimentos, porque essa é a única maneira como poderia ser abordado o misterioso e vasto assunto dos passes mágicos em uma conjuntura moderna. As pessoas que hoje praticam a Tensegridade não são praticantes xamãs em busca de alternativas xamanísticas que envolvem disciplina, esforço e privações rigorosos. Portanto, a ênfase dos passes mágicos precisa ser no valor deles como movimentos e em todas as conseqüências que tais movimentos acarretam.

Dom Juan Matus tinha explicado que, em relação aos passes mágicos, o primeiro impulso dos feiticeiros da sua linhagem que viveram no México em tempos antigos foi o de se saturarem com movimentos. Eles organizaram cada postura, cada movimento do corpo, dos quais podiam se lembrar, em grupos. Acreditavam que, quanto mais extenso o grupo, maior o seu efeito de saturação e maior a necessidade dos praticantes de usarem suas memórias para lembrá-los.

Após organizarem os passes mágicos em grandes grupos e praticarem-nos como seqüências, os xamãs da linhagem de Dom Juan julgaram que esse critério de saturação havia cumprido os seus objetivos e o suprimiram. Dali em diante, o desejado era o oposto: a fragmentação dos grandes grupos em segmentos simples, que eram praticados como unidades individuais independentes. A maneira como Dom Juan Matus ensinou os passes mágicos para o seus quatro discípulos – Taisha Abelar, Florinda Donner-Grau, Carol Tiggs e eu – foi o produto dessa orientação para a fragmentação.

A opinião pessoal de Dom Juan era que o benefício de praticar os grandes grupos era patentemente óbvio; tal prática forçava os iniciados xamãs a usarem sua memória cinestética. Ele considerava o uso da memória cinestética como um verdadeiro prêmio no qual aqueles xamãs tinham tropeçado acidentalmente e que tinha o maravilhoso efeito de calar o barulho da mente: o ‘diálogo interno’.

Dom Juan tinha me explicado que a maneira como reforçamos nossa percepção do mundo e a mantemos fixada em um determinado nível de eficácia e função é conversarmos conosco mesmos.

-Toda a raça humana – disse-me ele numa ocasião – mantém um determinado nível de função e eficácia através do diálogo interno.
O diálogo interno é a chave para manter o ponto de aglutinação estacionário na posição compartilhada por toda a raça humana: na altura das omoplatas, a um braço a distância.

“Realizamos o oposto do diálogo interno, isto é, o silêncio interior, os praticantes podem romper a fixação dos seus pontos de aglutinação, adquirindo assim uma extraordinária fluidez de percepção".

A prática da Tensegridade tem sido organizada em torno da realização dos grandes grupos que, nas Tensegridade, foram renomeados como séries para evitar a implicação genérica de chamá-los simplesmente de grupos, como Dom Juan fazia. Para realizar essa organização, foi necessário restabelecer os critérios de saturação que tinham inspirado a criação dos grandes grupos. Os praticantes da Tensegridade precisaram de anos de trabalho meticuloso e concentrado para reunirem novamente um grande número de grupos desmembrados.

Restabelecer os critérios da saturação através da realização das grandes séries trouxe, como resultado, algo que Dom Juan já havia definido como o objetivo moderno dos passes mágicos: a redistribuição de energia. Dom Juan estava convencido de que esse sempre tinha sido o objetivo não verbalizado dos passes mágicos, mesmo na época dos antigos feiticeiros. Os antigos feiticeiros não pareciam ter sabido disso, mas, mesmo que tenham sabido, nunca o conceitualizaram nesses termos. Por todas as indicações, o que os antigos feiticeiros buscavam avidamente e que experimentavam como uma sensação de bem-estar e de plenitude quando realizavam os passes mágicos era, em essência, o efeito da energia não utilizada sendo recuperada pelos centros de vitalidade do corpo.

Na Tensegridade, os grandes grupos foram reunidos novamente e um grande número de fragmentos foi mantido como unidades funcionais simples. Essas unidades foram atadas com um propósito – por exemplo, o propósito de intentar ou o propósito de recapitulação ou o propósito de silêncio interior e assim por diante -, criando desse modo as séries da Tensegridade. Dessa maneira foi alcançado um sistema no qual os melhores resultados são buscados através da realização de grandes seqüências de movimentos que definitivamente sobrecarregam a memória cinestética dos praticantes.
Em todos os outros aspectos, a maneira de ensinar Tensegridade é uma reprodução fiel da maneira como Dom Juan ensinava os passes mágicos aos seus discípulos. Eles os inundava com uma profusão de detalhes e deixava suas mentes atordoadas com a quantidade e a variedade dos passes mágicos ensinados e com a implicação de que cada um deles individualmente era um caminho para o infinito.

Os seus discípulos passaram anos acabrunhados, confusos e, acima de tudo, desanimados, porque achavam que serem inundados dessa maneira era uma injusta investida violenta contra eles.

Uma vez, quando questionei a respeito do assunto, ele me explicou:

-Quando ensino os passes mágicos a vocês, estou seguindo o estratagema dos feiticeiros tradicionais de enevoar a sua visão linear. Saturando a memória cinestética de vocês, estou lhes criando um caminho para o silêncio interior.

“Uma vez que todos nós estamos cheios até a borda com o que precisamos fazer e com o que não precisamos fazer no mundo da vida cotidiana, temos muito pouco espaço para a memória cinestética. Você deve ter notado que você não tem nenhum espaço. Quando quer imitar meus movimentos, você não consegue permanecer me encarando. Precisa ficar ao meu lado para estabelecer no seu próprio corpo o que é direito e o que é esquerdo. Agora, se uma grande seqüência de movimentos lhe era apresentada, isso lhe custaria semanas de repetição para se lembrar de todos os movimentos. Enquanto você está tentando memorizar os movimentos, precisa abrir espaço para eles em sua memória afastando outras coisas do caminho. Esse era o efeito que os antigos feiticeiros buscavam.

A alegação de Dom Juan era que, se seus discípulos continuassem a praticar obstinadamente os passes mágicos, apesar da confusão deles, chegariam a um limiar no qual sua energia redistribuída faria pender a balança e eles seriam capazes de usar os passes mágicos com absoluta certeza.

Quando Dom Juan fez essas declarações, mal consegui acreditar nelas. Contudo, em um determinado momento, exatamente como ele havia dito, parei de ficar confuso e desanimado. De uma maneira muito misteriosa, os passes mágicos, uma vez que são mágicos, se organizaram em seqüências extraordinárias que esclareceram tudo. Dom Juan explicou que a clareza que eu estava experimentando era o resultado da redistribuição da minha energia.

Hoje em dia, a preocupação das pessoas que praticam a Tensegridade pode comparar-se exatamente a minha preocupação e à das outras discípulas de Dom Juan, quando começamos a realizar pela primeira vez os passes mágicos. Elas se sentem atordoadas com a quantidade de movimentos. Reitero para elas o que Dom Juan reiterava repetidamente para mim: o que é de suprema importância é praticar qualquer que seja a seqüência lembrada da Tensegridade. No final, a saturação levada adiante trará os resultados buscados pelos xamãs do antigo México: a redistribuição da energia e suas três qualidades concomitantes – a inibição do diálogo interno, a possibilidade de silêncio interior e a fluidez do ponto de aglutinação.

Como um contribuição pessoal, posso dizer que, saturando-me com os passes mágicos, Dom Juan realizou duas façanhas formidáveis: primeiro, trouxe para a superfície uma porção de recursos ocultos que eu tinha, mas que não sabia que existiam, como a capacidade de me concentrar e a capacidade de me lembrar de detalhes, e segundo, rompeu gentilmente minha obsessão com o meu modo linear de interpretação.

Quando o questionei sobre o que eu estava experimentando a esse respeito, Dom Juan me explicou:

-O que está acontecendo é que você está sentindo o advento do silêncio interior, uma vez que o seu diálogo interno tem sido minimamente ressaltado. Um novo fluxo de coisas tem começado a entrar no seu campo de percepção. Essas coisas sempre estiveram lá, na periferia da sua consciência geral, mas você nunca teve energia suficiente para ficar deliberadamente consciente delas. À medida que você enxota o seu diálogo interno, outros itens de percepção começam a preencher o espaço vazio e, portanto, a falar.

O novo fluxo de energia que os passes mágicos trouxe para o seus centros de vitalidade está tornando o seu ponto de aglutinação mais fluido. Ele não está mais rigidamente paralisado. Você não está mais sendo dirigido pelos nossos ancestrais que nos tornam incapazes de darmos um passo em qualquer direção. Os feiticeiros dizem que a energia nos torna livre, e esta é a absoluta verdade.

Passes Mágicos – Carlos Castaneda